O lugar do tempo em “The Fruit Tree” (de Isabelle Tollenare, 2022) e “If You Don’t Watch the Way You Move” (de Kevin Jerome Everson, 2022)
escrito por Clara Prado
“The Fruit Tree” começa numa casa vazia, dessas pré-moldadas que nós vemos em muitos filmes norte-americanos. Esses que se passam em subúrbios de classe média ou classe média baixa, com o carpete, as paredes cinzas, muitos armários embutidos, aquela cozinha que tem um balcão no meio… Casas que poderiam ser em qualquer lugar ou em lugar nenhum.
No filme, duas mulheres visitam a casa porque desejam se mudar para ela; então vão imaginando como seria preencher seus cantos de memórias. Sobem até o quarto e olham pela janela. A casa é perto da escola das crianças, do posto de gasolina e do mercado. Enquanto traçam a paisagem com os olhos, nós criamos nossos mapas sem ver a vista.
Morar lá, uma delas diz, lhe economizaria dinheiro, estresse e saudade (heartache).
Os donos antigos da casa só deixaram para trás um vaso. As mulheres deixam a planta no chão da sala, o único lugar onde bate sol. Talvez, assim, ela cresça, dê frutos.
Passamos a olhar pela mesma janela. Um deserto, bem ao longe o tal posto de gasolina, nenhuma escola identificável. Eu tinha imaginado outra casa. A vista lembra sempre a vista daquela outra. Sharleece (Sharleece Bourne), quando olha para o deserto, vê o muro que dava para sua janela ficando maior. O muro também era um deserto, uma tela. No canto dele, dava para entrever os galhos de uma árvore frutífera. A garota conta da relação que tinha com os antigos vizinhos. Eram pessoas de maior renda cujo quintal e a árvore frutífera ficavam a um muro intransponível de distância. O que ela via era uma fantasia a qual vai narrativizando, remetendo ao imaginário americano da white picket fence, que poderíamos traduzir como “as casas de comercial de margarina”. Ela transpõe para esta outra janela, pela qual a tarde vai caindo no deserto, enquanto a gente se pergunta o que aconteceu com a planta que estava no chão da sala.
Então, aparece uma outra casa (a casa de infância de Sharleece?) e a sala vai aos poucos se enchendo de areia, por um bom tempo. Uma tempestade vai transformando a casa da infância, sorrateiramente, em um deserto.
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Em “If You Don’t Watch The Way You Move”, Derek “Dripp” Whitfeld Jr. e Taymond “ChoSkii” Hughes gravam um trap. O ambiente é um estúdio em Columbus, Mississippi, mas a imagem granulada e o escuro envolvem as personagens de tal maneira que as figuras se dissipam. E o entorno também.
Esse espaço que a imagem pobre abre para a gente imaginar e se relaciona, paradoxalmente, com a claridade excessiva do deserto que ofusca: a casa da infância sumindo em meio às memórias, mas continuando a se projetar pela janela. No escuro do filme de Kevin Jerome Everson não temos um vazio, mas um espaço cheio de desejo: da música sendo renderizada; do sucesso porvir; dos desejos de infância. É interessante pensar o tempo que os filmes dedicam ao silêncio. Normalmente, nós cortaríamos a espera, pularíamos para a música pronta, para a casa tomada por areia. Mas, aqui, o tempo assume uma dimensão performática.
Em “The Fruit Tree”, mais claramente, com a transformação da sala em deserto por meio do depósito artificioso da areia, e em “If You Don’t Watch The Way You Move”, isso se reforça com a evocação de John Cage, creditado no filme, e sua peça de 4’33 minutos de silêncio, duração exata da cena. Colocar o processo no produto é um jeito de furar, dentro do próprio filme, um espaço a ser preenchido com fantasias de toda forma.
O escuro borra as autorias. No segundo filme, vemos apenas partes de corpos que, em conjunto, esperam. Não há uma “estrela”, um protagonista, a não ser o silêncio. E dar protagonismo ao silêncio, num contexto neoliberal salve-se quem puder que demanda produção, desempenho, performance, criação (etc., etc., etc.)… é um ato de recusa.
No livro A soberania do silêncio: além da resistência na cultura negra (2012), Kevin Quashie, o professor norte-americano de literatura e cultura negra descreve a cena famosa dos atletas Tommie Smith e John Carlos no pódio das Olimpíadas de 1968, de cabeça abaixada e punho erguido. Ele tenta pensar de onde deriva a força dessa imagem e acaba concluindo que é no silêncio do protesto. É muito raro vermos a representação do silêncio negro na cultura norte-americana, o silêncio da intimidade, da contemplação, diferente do silenciamento pela violência.
Devolver o direito ao silêncio e à intimidade.
É como se os víssemos rezar, ele diz. Ao fecharem os olhos, eles estão vulneráveis, estão no escuro.
Não consigo deixar de pensar nos jovens de “If You Don’t Watch The Way You Move”, rezando, à sua maneira, enquanto esperam; e nas mulheres de “The Fruit Tree” sonhando uma casa, o lugar da intimidade.
Texto crítico escrito durante a 6ª oficina de crítica cinematográfica, Corpo Crítico, intitulada “Autorias em Disputa; ou a Crítica como Contaminação”, ministrada pela plataforma de crítica Indeterminações, durante o 25ºFestCurtasBH – Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte.