Crítica de “Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando” (de Aida Harika Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami, Roseane Yariana, 2023)
escrito por Ana Lúcia Azevedo, Amanda Freire, Barbara Bello, Clara Prado, Helena Elias, Lilli Andrade, Lorenna Rocha, Raianne Ferreira, Tainá Lima, Arthur Santana, Gabriel Araújo, Lucas Andrade
No primeiro dia do Corpo Crítico 2023, nós, da INDETERMINAÇÕES, propusemos um exercício de escrita coletiva com toda a turma.
Após assistirmos juntos ao filme “Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando”, alunos e alunas ditaram palavras, objetos, sensações, descreveram cenas, de modo a se aproximarem do curta-metragem a partir de sua materialidade. Como ponto de partida, nos inspiramos no texto da ficha de apresentação da instalação “ANTENA IA MBAMBE Mimenekenu Ê lá Tempo!”, (de Ana Pi e Taata Kwa Nkisi Mutá Imê, 2023) que compõe a 35ª Bienal de São Paulo – coreografias do impossível, para construir o método de produção textual.
Em seguida, solicitamos que cada participante escrevesse um parágrafo a partir da nossa conversa em sala de aula. Por entendermos tal processo como uma prática de construção coletiva do pensamento, decidimos fazer uma montagem dos materiais resultantes dos diálogos entre o grupo e de excertos dos textos desenvolvidos por cada um.
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Ofício, miçanga, erva, yãkoana, mulheres indígenas, homem, pilão, ritmo, processo, folhagem, balançar, pó, mulher em dúvida, terra, chão, observação, fruição, o pensamento e a imagem, secar no sol, fogo, objeto de palha para abanar, mistura, zelo, crianças, câmera em movimento que foca e desfoca, a câmera corta a cena, a câmera não se interessa em dar uma visão panorâmica, peneira de tecido, pó, casa, povo yanomami, colares, aldeia, fumaça, mata fechada, vida, sol…
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Extraída da árvore yãkoana hi, a substância da yãkoana passa por um processo de moagem até virar o pó que é utilizado para se comunicar com os xapiri pë, espíritos da floresta. Em “Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando”, esse processo é atravessado pelos pensamentos de uma mulher yanomami. O filme começa e termina como movimento pendular continuado, seja pelo ritmo do bater do pilão, pelos ruídos da floresta na banda sonora ou pelos questionamentos dela. Diante de uma atividade cotidiana e ancestral, a voz da mulher conduz o filme. O fluxo de ideias e elaborações traz à tona a possibilidade da dúvida, a qual acaba por ser uma forma também de aproximação da feitura da yãkoana.
O sol aparece refletido nas folhas verdes, sensação de um tempo ameno, agradável, que não é quente ou frio, o jogo de luz e sombra figura os sentimentos de dúvida e crença na planta, multiplicidade de presenças, os Xapiri, acesso aos espíritos, dia, xamã, movimento pendular com esforço, pontos de interrogação, ausência de foco, mulher de costas e de cócoras em observação…
Há uma imagem de uma mulher yanomami caminhando na floresta. Não sabemos se é dela a voz que ouvimos ou as imagens que observamos. É um dos poucos momentos do filme em que a câmera parece deslocar-se da primeira pessoa para mostrar-se a si no espaço. Enquanto isso, crianças, mulheres, homens e pessoas mais velhas vivem e trabalham rotineiramente. O olhar encarnado na câmara, por sua vez, não cessa de produzir imagens das pessoas de costas. Seria esse um movimento corporal de recusa?
Não há apreensão completa daqueles corpos, seja do homem que pila a planta, das crianças sentadas em roda, das crianças tingidas de preto e com penas na cabeça. A câmera lampeja mas não se fixa, nem busca algum tipo de acesso privilegiado. O interesse da câmera parece jazer na iminência deste grande acontecimento (o contato com os xapiri), que suscita pequenas conspirações, ou mesmo, algo ainda mais singular: um mero vagar hesitante.
Tronco de uma árvore, fruto na cor vermelha, miçangas e shortinho praiano, panela de alumínio, crianças ao redor da fogueira que também não olham para a câmera, filme em primeira pessoa feito por três pessoas, balançando na rede: movimento de câmera, a câmera dentro da aldeia como um agente participativo, câmera-personagem, câmera que não tenta representar, câmera que tenta se relacionar com elementos fugidios, câmera que vaga e se distrai, rede, chinelo, descanso, relaxamento, folha de bananeira, som do pilão…
O tempo da moagem é o tempo de repetição – no entanto, cada movimento confere uma nova forma à matéria. Quanto mais fino o pó, mais perguntas são feitas pela mulher: “essa planta secará mesmo ao sol? sua inalação causaria dores de cabeça? levaria aos xapiri?” Dúvida e imaginação caminham juntos. O jogo de luz e sombra entre as plantas, e em muitas outras imagens, figuram a dúvida que mobiliza a mulher e o filme. E mais: ele potencializa o estado de interrogação e o movimento errante da câmera.
Movimento pendular do som, um som de conversa do ambiente que é contínuo, não para que nem o pilão, sobreposição de ruídos, “enquanto ele trabalha, eu observo o processo”, continuidade de ruídos externos em contraste com as diferentes imagens, parece que estamos vendo alguma coisa que ela não tá vendo e ela está vendo alguma coisa que não estamos vendo, observar-mostrar o entorno da comunidade para mostrar de onde vem a planta…
Momento final do processo – a utilização da yãkoana. O sol se põe sobre o ritual que envolve xamãs, os xapiri e a comunidade. O tensionamento entre os pensamentos dela e as imagens parece ir silenciando. Uma espécie de névoa branca (talvez fumaça?) envolve um xamã. Não chegamos a vê-lo inalar a yãkoana.
O sol aparece refletido nas folhas verdes, sensação de um tempo ameno, agradável, que não é frente ou frio, rito de passagem, forte presença masculina, câmera em movimento em busca de algo, diferenciação de gênero no espaço, as penas brancas na cabeça marcam uma diferença entre homens e mulheres? O sol poente, o som do pilão e da mata retornam mesmo na escuridão da tela.
Com a tela preta, os sons da floresta assumem o primeiro plano.
“Será que tomando apenas uma vez eu poderei vê-los?”
Não sabendo ser possível mirá-los,
a mulher nos convida,
através do cinema,
a imaginar os xapiri.
Texto crítico escrito de maneira coletiva pelos integrantes da 6ª oficina de crítica cinematográfica, Corpo Crítico, intitulada “Autorias em Disputa; ou a Crítica como Contaminação”, ministrada pela plataforma de crítica Indeterminações, durante o 25ºFestCurtasBH – Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte.