Crítica de “Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando” (de Aida Harika Yanomami, Edmar Tokorino Yanomami, Roseane Yariana, 2023)
escrito por Clara Prado
O chão de terra da aldeia, o pó de Yãkõana, todas as folhas da floresta, o balanço da rede: a realidade recortada por uma câmera que coincide com o movimento do olhar.
Um olhar que se deixa distrair e nos diz “olha você também…”
As cenas do preparo da Yãkõana balançam quase ao ritmo da forma como o pilar é batido. O som que brota do trabalho manual, do movimento pendular do corpo inteiro se movendo, continua presente mesmo quando outras cenas aparecem na tela.
Atravessando as imagens, ele conecta os fragmentos filmados da aldeia como algo espectral, que não é visível, mas está presente. A voz da mulher, também num vai e vem, narra sobre o que está mostrando através da câmera, enquanto se pergunta sobre o que não é possível mostrar.
Em “Thuë Pihi Kuuwi – Uma Mulher Pensando”, quase não há passagem com olhares para a câmera.
Mulheres, senhores e todas as crianças da aldeia, quando aparecem, têm um olhar distante. Olham em volta, no entorno, e parecem enxergar algo que a câmera não nos mostra. E talvez nem conseguiria.
Existem limites naquilo que uma imagem é capaz de revelar.
Os Xapiri (espíritos), por exemplo, tornam-se visíveis apenas após o ritual que envolve o pó da Yãkoana.
(E aqui, voltamos a escutar o ritmo hipnótico do pilão).
Para os povos yanomami, a captura da imagem de alguém é um jeito de roubar parte de sua alma, porque torna ainda presente a pessoa no mundo, mesmo após sua partida.
Existiria um movimento de recusa em não entregar o olhar para a câmera?
Mas filmar também é um jeito de ver.
A câmera coincide com o olhar da mulher que se pergunta incessantemente sobre o poder do Yakoana e sobre a possibilidade de enxergar além do mundo físico.
A narração elucida esse movimento: “Será que tomando apenas uma vez eu poderei vê-los”?
Nessa pergunta sobre o ritual e os Xapiri, a dúvida parece isolar a mulher, como se ela fosse a única que não tivesse certeza do poder da planta, da existência dos Xapiri, da possibilidade de acessá-los…
Guiados pela câmera-olhar e imersos nos seus pensamentos através da narração, acessamos as imagens pela perspectiva da mulher.
O seu ponto de vista, não o de outro.
O que será que eles vêem? O que será que mostrariam?
A pergunta sobre os Xapiri se dobra e se volta para a singularidade de cada olhar.
“Eu imagino”, “eu penso”, nos conta a voz, enquanto nos mostra cenas muito concretas do cotidiano na aldeia.
Ao instaurar distâncias entre quem filma e quem é filmado, não é uma maneira de documentar o outro, mas de abrir o visível, o comum, para a possibilidade de fabular.
A câmera, em suas mãos, não é um instrumento de captura, mas uma maneira de fazer perguntas.
Texto crítico escrito durante a 6ª oficina de crítica cinematográfica, Corpo Crítico, intitulada “Autorias em Disputa; ou a Crítica como Contaminação”, ministrada pela plataforma de crítica Indeterminações, durante o 25ºFestCurtasBH – Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte.