Crítica de “Energúmeno” (de Luis Calil, 2023) e “Queime Este Corpo” (de Mauricio Bouzon e Denis Cisma, 2023)
por Lili Andrade & Arthur Santana
Quando pensamos no cinema de horror, lembramos de produções estadunidenses, sobretudo o slasher, que, pelas questões mercadológicas da distribuição do cinema norte-americano, teve uma propulsão para diversos outros países. Consequentemente, há uma forte propagação de traços culturais próprios dos EUA que, em outros contextos, como o nosso, talvez não façam tanto sentido. Essas questões podem transparecer desde ideias culturais simples, como acampamentos de verão ou festas de halloween, até o culto massivo às armas e a defesa da propriedade privada.
Por via de regra, o assassino desses filmes de horror dificilmente é parado pelas forças de segurança do Estado – representadas pela polícia –, exigindo que o protagonista, em um esforço individual, se arme para garantir a sua sobrevivência. Também é evidente que o diálogo nunca é possível, apenas a violência extremada. A partir disso, como seria possível um filme de terror ambientado em terras brasileiras? “Energúmeno” e “Queime Este Corpo”, filmes que compõem a Mostra Maldita do 25º FestCurtasBH – Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte, esboçam algumas possibilidades.
Em seu curta, Luis Calil tem como ponto de partida uma ação corriqueira: uma viagem a um lugar isolado. Enquanto espectadores, podemos lembrar – entre tantas possibilidades – o filme “Nós” (de Jordan Peele, 2019), que já se destaca por tensionar lugares comuns do slasher. A partir deste ponto, ainda que familiares para o gênero, o filme traça caminhos menos óbvios, já que todo o conflito da obra se dá pela presença de um indivíduo estranho que aterroriza o personagem principal ao aparecer no banco de trás do seu carro. Esse indivíduo é apresentado na cena de forma muito semelhante ao aparecimento de “entidades” e “assassinos” em filmes de terror. A partir de uma câmera subjetiva, vemos apenas o rosto deste homem envolto em sombras. Marcado pela pseudo valentia do personagem principal, cheio de trejeitos do estereótipo de “malandro” — muito semelhante ao do personagem Chicó em o “Auto da Compadecida” (de Guel Arraes, 2000), o personagem passa o dia tentando intimidar esse indivíduo na tentativa de que ele vá embora.
Um momento que demarca as especificidades do contexto brasileiro em relação ao norte-americano é a sequência em que o protagonista, ao treinar com uma faca, busca um lugar para deixá-la junto ao corpo. Em um primeiro momento, ele retira o objeto de um faqueiro e o coloca no bolso do roupão, mas desiste devido ao balanço provocado pelo peso, optando por realocar no cós do shorts, de uma forma bem desajeitada. A cena poderia indicar até mesmo uma crítica à ideia armamentista que essas obras propagam, expondo o ridículo de armar-se como a primeira medida nesta situação, sobretudo, inverossímil no Brasil, onde — apesar da tentativa do último governo — uma arma de fogo não pode ser adquirida com facilidade.
“Queime Este Corpo” também parte de um lugar comum do cinema comercial. Na narrativa, uma guerra se desenrola enquanto os protagonistas tentam encontrar um refúgio em meio ao caos. Este contexto funciona quase como um pretexto para a presença dos protagonistas naquele ponto isolado. Apesar disso, o curta abraça um terror psicológico – estilo que nem sempre é unanimidade para o público em geral quando comparado às tramas envolvendo assassinos aterrorizando adolescentes.
A dupla de diretores se debruça, então, na relação do casal. A dinâmica dos personagens é curiosa, há afeto, mas evidentemente há pontos de conflito entre eles. Essa complexidade em grande parte é dada pelos diálogos truncados. Tal elemento, associado à montagem e, principalmente, ao som, envolve o espectador, causando uma sensação de desconforto, como se subitamente algo ruim pudesse acontecer.
O combate que é travado fora do rancho em que eles se encontram parece, afinal, funcionar como um indicativo de um conflito interno no relacionamento, ou como algo de errado que afeta especialmente Alê (Patrick Sampaio). Em outro diálogo, Júlia (Estrela Straus) afirma que sente falta da “leveza” e de como sua vida era anteriormente, o que também sustenta que há uma tentativa de pegar um elemento por vezes banalizado — neste caso, o contexto de guerra — e utilizá-lo como metáfora de uma possível instabilidade no relacionamento dos dois. Contudo, vale ressaltar que esse tipo de abordagem não inventa a roda; mas, certamente, sabe como aplicá-la.
Algumas estranhezas produzem um estado de alerta no espectador. Destacamos duas delas. Quando os protagonistas se aproximam da casa que seria do avô de Júlia, é evidente a presença de uma pessoa no interior, mas quando eles entram de fato, ele já não está lá. Em outro momento, uma montagem que desloca o olhar da mulher encontrando um corpo na floresta à cena do homem matando um animal (e demonstrando uma brutalidade até então não vista), ajuda a criar uma espécie de paranoia em quem assiste.
Abrindo mão de outra comparação, a produção permite-nos tecer paralelos com “Midsommar” (de Ari Aster, 2019) tanto pelo caráter de desconforto em relação ao destino dos personagens, quanto pelo próprio ato de queimar um corpo ao final do filme. Mas, assim como o curta citado anteriormente, a violência não é direcionada para o outro, e o desfecho, apesar de chocante, não promove uma catarse através da selvageria.
Ambos, por fim, não tem como elemento de terror um assassino, criatura extraterrena, ou algo do gênero, mas as próprias relações humanas. Em “Energúmeno” há um desfecho possível pela compreensão da necessidade do outro ao invés da brutalidade. Em “Queime Este Corpo”, ainda que trágico, as questões travadas pelo homem não são trazidas à tona na forma de uma violência direcionada ao outro – o que “Midsommar” faz quando o companheiro da protagonista é morto com o seu aval –, mas para si mesmo.
Texto crítico escrito de maneira coletiva pelos integrantes da 6ª oficina de crítica cinematográfica, Corpo Crítico, intitulada “Autorias em Disputa; ou a Crítica como Contaminação”, ministrada pela plataforma de crítica Indeterminações, durante o 25ºFestCurtasBH – Festival Internacional de Curtas de Belo Horizonte.