Políticas do Artifício
PARALELA
Programar a inquietude, caminhar junto à estranheza
por Carla Italiano e Renan Eduardo
Diante do conjunto de filmes contemporâneos, sobretudo de um festival que recebe inscrições de todos os cantos do Brasil e do mundo, há obras esparsas que parecem não comportar os procedimentos usuais de criação e fruição fílmica. São trabalhos desobedientes nas suas posturas e formas, não somente perante o mundo social, mas – sobretudo – com o que se convencionou chamar de cinema. Obras que seguem na contramão de certa vocação naturalista a atravessar a história das imagens em movimento, em particular nos termos do legado de um “realismo social”, ou de uma expectativa de fidelidade entre regime imagético e realidade social, algo que se imprime em diversas outras produções atuais. Nos filmes aos quais nos referimos, o que se vê é uma espécie de realismo a ser conquistado, parafraseando Serge Daney, nas suas quebras com os pactos de verossimilhança e em representações que infringem as reações tidas como comportamentos “naturais”. Contudo, engana-se quem pensa que tais filmes não passariam de “firula” com a linguagem, sendo, no limite, entendidos como despolitizados. É a dimensão de artifício que ganha protagonismo aqui, seja no caráter fabricado que emerge ao primeiro plano, seja nos gestos críticos que simultaneamente convocam e solapam os gêneros e convenções – defendendo, com isso, outros entendimentos de política.
Em sua carne, trata-se de obras que não só afrontam tais ordenamentos, bem como criam fricções no próprio processo curatorial. Como agir diante desses filmes? Como programar imagens e sons que geram atrito no contato com outros? O que fazer com as obras errantes, que contestam o fluxo supostamente natural das coisas e da vida? Indo adiante, como criar aliança entre filmes que, ao romperem com pretensões naturalistas, tornam visíveis as suas entranhas?
Longe de responder a tais perguntas, a mostra “Políticas do artifício” se propõe a levantar outras indagações. A aposta é numa multíplice de obras e artifícios fílmicos que são tão corajosos quanto, talvez, esquisitos. Compõem esta sessão filmes que flertam com tradições diversas, entre ficcionais, documentais, do cinema de animação e dos hibridismos formais, regidos por uma postura rebelde que fabrica estranhezas e produz opacidades. Seriam escolhas de estilo, contingências orçamentárias ou cinema de invenção? Impossível distinguir. O que temos são as obras em suas materialidades. Delas surgem operações que evidenciam seus artefatos, rompem as trucagens da transparência e dão a ver as incongruências dos mundos sociais postos em jogo.
Tais inquietações se manifestam na artificialidade do universo cênico construído em Se eu tô aqui é por mistério (Clari Ribeiro, 2024), valendo-se de signos do horror e da ficção científica a partir de um rasgo cuir e terceiro-mundista. Elas também estão na incomum naturalidade de um mundo de amputados em Posso contar nos dedos (Victória Kaminski Deniz, 2024); na dimensão onírica de um regime de imagens que se lança ao abismo em Caravana da coragem (Pedro B. Garcia, 2024); ou na distopia Power Rangers de um presente cerceado, algo que contamina a realidade da cidade de Imperatriz, no Maranhão, em Não existem mártires, apenas marketing (João Luciano, 2024). Já os artifícios que atritam com o registro e a inscrição do cinema também se fazem manifestos na releitura de filmes pornôs do primeiro cinema austríaco, com os corpos dissidentes e queers de Saturn Return (Daniela Zahlner, 2024), único filme internacional a integrar o programa. Ao navegar por esta sessão, convidamos vocês a mergulharem com corpos e sentidos abertos para as sensações de estranheza; para estranhar e ser estranhade pelas imagens, sons e ruídos daquilo que soa misteriosamente familiar.