Fissuras na Casca
PARALELA
Fissuras na casca
Gabriel Araújo
“Um pedestal vazio nos leva a vários propósitos.”
Kiluanji Kia Henda, em Big Bang Henda (2023)
O monumento, por si só, tende a ser grandioso. Independentemente de seu tamanho, sua grandiosidade reside na sua condição de materialidade – o esboço de uma narrativa da história que se pretende congelar no tempo. Esse característico apelo ao eterno, aquela teimosia que cintila, imobilizada, como se estivesse a encarar tudo e todos com a sua tentativa de existência perene, pode sim carregar certo ar de petulância, mas esconde uma ameaça ainda mais grave: uma mensagem de conformação.
Não é que monumentos não possam ser destruídos. Pelo contrário. A história foi capaz de nos dar provas de que a sua tendência à eternidade carrega consigo uma natureza obsoleta – material, vide as ruínas, e simbólica, vide os discursos. Mas, do mesmo modo como o tempo instiga a mudança, sua pulsão espiralar também nos promete retornos, e nessas ondas podem estar inscritos tanto os exercícios rumo à utopia quanto os prenúncios do terror colonial.
Nos últimos anos, o cinema brasileiro se viu forçado a revisitar sua própria história e a mirar os monumentos que um dia erigiu. Com a emergência de novos coletivos no cenário social e político contemporâneo, corpos diversos, em movimento, em contradição e em constante aprendizado, seguem propondo outras formas de sociabilidade, questionando narrativas dadas como corretas, e erigindo novos (e antigos) modos de existir. Nesse contexto, não são poucas as produções – especialmente no circuito de curtas-metragens contemporâneos – que se dedicam a investigar as identidades de um povo, as violências às quais ele foi submetido, as especificidades de suas vidas e os seus anseios de futuro.
“Fissuras na crosta” não faz muito mais do que isso. Ousa, contudo, dar um passo além, e propõe reunir quatro curtas que estão, cada qual à sua maneira, delineando processos de construção e desmoronamento de monumentos. Longe de apresentar resultados, eles denunciam armadilhas, sugerindo, em conjunto, uma análise crítica capaz de evidenciar como chegamos onde estamos, e quais caminhos trilhar para alcançar o rumo que queremos.
Nada mais justo que iniciar esse percurso acompanhando o riso frouxo de Mutante, descrita como uma “gigante gostosa” por uma das sinopses de Animais noturnos (2024), de Indigo Braga e Paulo Abrão. Por meio do experimentalismo, o curta monumentaliza uma gata e a observa brincar com a cidade do Rio de Janeiro, invertendo, aqui, sim, pelo tamanho, a lógica que impera nas práticas de presença, ocupação e transformação de um espaço público.
Big Bang Henda (2023), de Fernanda Polacow, explicita o gesto antes apresentado. Ao evocar o trabalho do artista Kiluanji Kia Henda, o filme investiga os monumentos, paisagens, esboços e cascas do passado colonial angolano, analisando o presente do país e escrevendo cartas que possam instigar os sonhos de ufolo (liberdade) para as gerações futuras. “Pés firmes no chão, poros abertos”.
As ruínas de Angola também se fazem ecoar, já no tempo presente, num dos maiores crimes ambientais em andamento no Brasil, com o afundamento do solo causado pelas atividades predatórias da petroquímica Braskem em Maceió. Após décadas de extração de sal-gema na região, cinco bairros da cidade tiveram suas comunidades removidas compulsoriamente, numa expulsão que resultou no esvaziamento de um espaço onde antes pulsava vida. Nas casas inabitadas e em colapso, monumentos do lucro e da ganância, como nos convoca a pensar Kia Henda, Ulisses Arthur imagina, coletivamente, uma ocupação pronta para o embate em Cavaram uma cova no meu coração (2024). Junto a uma gangue de adolescentes e crianças, com suas próprias vontades e suas ficções, o curta propõe uma intervenção radical: revivesce memórias e fabula treinamentos de guerra.
A sessão se encerra com a voz do líder yanomami Davi Kopenawa, que partilha uma ética própria da recusa à monumentalidade em A fumaça e o diamante (2023), de Bruno Villela, Fábio Bardella e Juliana Almeida. Num único plano, sob a presença de uma névoa – possível agouro da epidemia-fumaça que cobriria o país, possível elemento que nos conecta ao onírico e, assim, ao sagrado –, o curta denuncia a xawara que conforma os processos de morte em estado de solidificação. Contra um busto esculpido sobre um pedestal de pedra, Kopenawa nos lembra que as folhas de uma árvore em crescimento ainda balançam. Quais narratividades suas seivas protegem?