Crises do trabalho, levantes da fragilidade
PARALELA
Crises do trabalho, levantes da fragilidade
por Juliana Gusman e Luiz Fernando Coutinho
O termo “ideologia”, e a teoria marxiana que lhe deu sustento, parece tão desgastado, hoje, quanto a coluna de um dos personagens de Worker’s Wings (Ilir Hasanaj, Kosovo, 2024), que abre esta sessão. A osteopenia da luta de classes nas disputas do contemporâneo, delimitadas, por parte do campo progressista, ao que se convencionou chamar de “identitarismo”, tem atrofiado debates e mobilizações. O mundo do trabalho e o poder do capital perderam centralidade como fatores de explicação e organização social da vida. Porém, se, teimosamente, seguirmos Marx e Engels (2007) e entendermos a ideologia como a naturalização de valores que asseguram relações concretas de dominação – como uma “consciência deformadora do real” –, veremos que não há nada mais ideológico do que negligenciar os usos táticos das identidades dentro de um sistema particular de exploração. Felizmente, um espectro insiste em rondar o cinema.
Nesta mostra, amotinam-se filmes que resgatam a urgência de contendas laborais, agravadas por um neoliberalismo que atomiza ainda mais as nossas rebeldias. As figurações da revolta, evidentemente, são vulneráveis e quebradiças como a defesa da pertinência de uma perspectiva marxista ou ossos doentes. Contudo, ao programarmos esses curtas lado a lado, vislumbramos um possível levante. Nesta barricada cinematográfica, aglutinam-se não somente os representantes do “proletariado clássico” – majoritariamente cismasculino, branco, fabril – mas as multidões de um “proletariado monstro” constituído, como diz Paul B. Preciado (2018), pelos sujeitos que se ocupam das tarefas reprodutivas – domésticas, sexuais, procriativas –, pelos imigrantes hiperpauperizados pela colonialidade vigente ou por aqueles e aquelas tornados antiquados e envelhecidos por uma lógica que não lhes dá importância.
Ocupando-se dos alvos desse descarte, o já mencionado Worker’s Wings inaugura uma poética da fragilidade. Não testemunhamos apenas a memória verbal e física de pequenos massacres perpetuados, sem alarde, contra um operariado kosovar ao longo do tempo. O filme nos interpela sensorialmente: a película de 16mm é tão fina quanto uma pele dilacerada por jornadas de trabalho extenuantes, e os zooms contemplativos, que se demoram na repetição hipnótica e alienante de máquinas soturnamente iluminadas, imprimem uma fantasmagoria visceral e política que dimensiona violências e horrores com justeza. O pendor melancólico desse documentário aponta para a descrença frente a falsas promessas de futuro, ainda que se aposte na força transformativa da denúncia, apesar de tudo.
Uma certa precariedade utópica também informa e conforma Eggs (Shinyoo Kang, Coreia do Sul, 2024), que reposiciona as atividades do cuidado no imaginário contraído do universo do trabalho. Tal como o proletariado de Worker’s Wings, a protagonista deste curta é uma presença esmaecida por um esforço laboral cotidiano – e não remunerado. À beira de um colapso, essa mulher tenta contemporizar os gestos do pai – que lhe traz ovos da fazenda –, as queixas do marido – que não aguenta mais comê-los – e o mal-estar não elaborado da filha pequena. Com uma plasticidade sóbria, o filme esboça insurreições em tom menor, adequadas a uma insatisfação não completamente repertoriada, ao menos por ora.
O vulto da rebelião sobrevoa com mais evidência os planos gerais de Why did you leave the horse alone? (Faouzi Bensaïdi, França, 2023). Aqui, há um descentramento narrativo e visual: o quadro recorta as pessoas para o fora de campo, instigando solidariedades interespécies. É um cavalo velho, abatido pela indústria do entretenimento, cujas falhas na pelagem lembram feridas abertas em outros filmes, que irá sintetizar o peso fatal da obsolescência. Por outro lado, sua rejeição alarga, involuntariamente, os caminhos libertos que podemos trilhar quando nos percebemos inúteis.
Nosso panfleto seria assim (Leandro Olímpio, Brasil, 2024), por fim, nos reconduz ao chão de fábrica. Uma câmera trêmula e ansiosa persegue a batalha obstinada de um líder sindical pela adesão da categoria petroleira. Sem maniqueísmos, este documentário de intervenção acaba registrando o desalento de uma coletividade solitária. Não há grandes esperanças, mas tampouco arrego. Afinal, em um último eco de Marx e Engels (2017), tudo que é sólido e estável pode se desmanchar no ar, para o bem e para o mal, mais uma vez.
Referências
MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
______. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2017.
PRECIADO, P. B. Testo Junkie. São Paulo: n-1 edições, 2018.