Curtas prosas: realizadores e realizadoras sobre o 27º FestCurtasBH

Marcelo Lin, diretor de “Cantô meu Alvará” (Minas Gerais, 2025), selecionado para a Competitiva Brasil.

Em algumas entrevistas e textos você menciona que “Cantô meu Alvará” fala sobre liberdade de uma forma ampla, permitindo outras visões sobre as vilas e favelas. Após a estreia, no último mês, no Festival de Brasília, a produção irá “jogar em casa”, como você brincou no Instagram. De que forma você acredita que apresentá-lo no FestCurtas faz com que o público de BH possa reinventar esse imaginário e qual sentimento você acredita que irá gerar nos moradores do Aglomerado que vão ver a própria realidade nas telas? Logo no início do filme há um off de dois homens conversando. É uma cena que pode até passar despercebida, mas que dialoga profundamente com a ideia de liberdade — não apenas a liberdade física, mas a liberdade de sonhar e de pertencer a outros espaços. Uma das vozes é a minha; a outra, de um jovem do Aglomerado. Eles falam sobre mudança: mudar de casa, de rotina, ou de vida. Um deles diz que não sabe como é mudar, porque nunca saiu dali. Muitos jovens de comunidade nunca saem do próprio bairro — às vezes, nem da própria rua. Isso pode ocorrer por envolvimento com o crime, mas também por uma sensação de que os outros espaços da cidade “não são para eles”. É raro ver jovens periféricos frequentando a Praça da Liberdade, cinemas, shows públicos, eventos como a Virada Cultural, entre tantos outros espaços urbanos. Quando falamos de liberdade neste filme, queremos refletir sobre essas prisões sociais e estruturais que nos mantêm reféns dentro dos nossos territórios. 

Outra questão central do filme são os sonhos e projetos de vida. Sonhar, muitas vezes, está fora do cotidiano da juventude preta e periférica. E mesmo quando o sonho existe, o leque de possibilidades é extremamente limitado. No caso das personagens principais, o desejo de serem artistas até aparece como uma das poucas opções possíveis, mas, à medida que a criança entende o mundo, percebe que aquele caminho não foi pensado para ela. Faltam estrutura, incentivo e tempo — luxos que a realidade dura da periferia quase nunca permite. A mesma lógica se aplica ao aprendizado de outro idioma. Nas periferias, poucas pessoas falam inglês ou enxergam a língua como possibilidade de ampliação cultural ou profissional. Quando colocamos Nayara para aprender inglês com o objetivo de morar em outro país, o gesto simboliza algo maior: o direito de sonhar. Mesmo quando o mundo não foi pensado para nós, podemos — e devemos — sonhar. É isso que nos move para frente.

Na sua fala durante o Festival de Brasília você afirma que todos os seus filmes foram feitos no Aglomerado da Serra e com pessoas que moram no local. Quais são as dificuldades de realização e distribuição de um cinema periférico? Quando pensei o filme, eu tinha uma convicção: retratar a favela com dignidade, fugindo dos estereótipos. Acredito que o cinema é uma ferramenta capaz de reinventar o imaginário e apontar para o lugar aonde queremos chegar. Por isso, a primeira decisão criativa foi reformar a casa. Eu não queria filmar mais um barraco mal-acabado, sem reboco, sem pintura, com uma estética pobre. Convidei a designer e arquiteta Marília Gabriela — a quem dedico este filme — para cuidar da arquitetura e da decoração do cenário. Gastamos muito tempo com a reforma: rebocar paredes, pintar, colocar azulejos, fazer o piso. Pode parecer simples, mas não é. Para quem começa uma casa do zero, equilibrando o básico entre comer e ter onde morar, esse gesto é enorme. Reformar uma casa simples, mas digna, é a realização de um sonho. É materializar o desejo de uma família por um cantinho aconchegante, com plantas, onde possam descansar e receber pessoas.

Outro aspecto fundamental do meu processo é fazer cinema com o mínimo de recursos. Mesmo com limitações financeiras, é essencial que as pessoas do Aglomerado sejam remuneradas pelos seus serviços e que o cinema gere, ainda que modestamente, renda e profissionalização. Quero que o cinema seja visto como uma possibilidade real de trabalho e futuro. Esteticamente, busco filmes que abordem temas sociais e políticos relevantes, mas que também sejam populares e acessíveis. É uma estratégia tanto para formação de público quanto para garantir que a comunidade — especialmente quem está retratado na tela — se veja, se reconheça e se orgulhe. 

Ver essa comunidade indo ao Cine Humberto Mauro pela primeira vez, assistindo a um filme que foge da violência e dos clichês da periferia, e se vendo representada com dignidade e estética de cinema — como aquelas produções que assistem no streaming — é o momento mais importante de todo o processo. É ali que o ciclo se fecha: o filme está pronto para ganhar o mundo. É a forma mais bonita de validar o trabalho e prestar contas a quem acreditou nesse sonho. Produzir no Aglomerado da Serra também traz muitos desafios práticos. Um deles é conciliar as agendas das pessoas envolvidas no filme. Como eu trabalho exclusivamente com cinema, não posso rodar apenas à noite ou nos fins de semana. Muitas filmagens foram feitas durante as férias dos personagens ou em feriados prolongados. A geografia do território também impõe obstáculos: becos estreitos, ruas apertadas, difícil acesso para carros e impossibilidade de montar grandes estruturas. Os deslocamentos entre locações são, na maioria das vezes, feitos a pé — carregando equipamentos, montando e desmontando entre uma cena e outra. Além disso, há o som vivo do Aglomerado. As casas são muito próximas, e frequentemente moram muitas pessoas em uma só. A favela tem um som vibrante, diverso, especialmente nos fins de semana. Para gravar, precisamos da colaboração de todos, buscando o máximo de silêncio possível — até nas cenas internas, que podem ser afetadas por esse ruído cotidiano.

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